Nos últimos tempos, tem-se falado demasiado por aí em inteligência emocional. O assunto, de extrema relevância na atual conjuntura pós-pandêmica, ganhou contornos massificantes, sendo largamente difundido, desde que as redes sociais absorveram os temas desse fundamental tópico da psicologia. Na atual seara do mercado virtual, temos visto influencers e coaches mimetizando Protágoras, quanto à abordagem dessa pauta, como se fossem aquilo que aparentam ser: mestres no saber. Há uma zona abissal que os separa dos verdadeiros doutos no assunto, uma vez que esses se ocupam da emoção com propósitos bem distintos. Enquanto, para os novos sofistas, a emoção é usada apenas como um tópico administrativo, visando o lucro e o sucesso; para os homens do saber, a finalidade é simplesmente o conhecimento; é arrancar da emoção o que ela é em si mesma.
Se, ao filósofo, não cabe conhecer a coisa em sua utilidade prática, mas como ela é em seu próprio ser, então, tratar do assunto “emoção” nos exige que desviemos nosso entendimento do sentido comum. Essa atitude nos serve como prerrogativa para que não gastemos energia tentando entender a emoção a partir de fatos e de circunstâncias que já temos por conhecidas. É preciso partir da emoção, se quisermos alcançá-la tal como é.
Por isso, convém fazer a seguinte interrogação, bem ao modo socrático: “o que é a emoção?” Jean-Paul Sartre experimentou uma resposta interessante, como forma de traçar uma breve definição, em seu opúsculo Esboço para uma teoria das emoções (1939). Refutando uma longa tradição do psicologismo, Sartre – nessa época, um jovem escritor – incorporou os ensinamentos da corrente fenomenológica capitaneada pelo filósofo Husserl. O conceito de emoção estava estritamente ligado ao que a psicologia positiva afirmava ser verdadeiro, mas até a primeira metade do século 20. Essa psicologia defendia a emoção como um fato isolado, esvaziado de qualquer significação. A emoção era vista como uma desordem fisiológica, como sintoma de distúrbios do sistema nervoso. E, portanto, algo sem sentido intrínseco. Além do mais, a emoção era analisada a partir de uma série de casos colecionados que formavam um mosaico psíquico do paciente.
O papel de Sartre foi extrair do conceito de emoção essa carga fisiológica, liberando o corpo de ser o depósito das emoções ou como uma espécie de reator, através do qual as pressões e tensões externas encontrariam um desafogo. Embora seja o corpo o suporte que sinaliza estados emocionais, seja vertendo lágrimas, seja explodindo em riso, Sartre frisou que a origem da emoção não é corporal. A emoção é uma consciência.
O que significa consciência? No entender de Sartre, consciência é um modo de apreender o mundo que se manifesta na relação necessária entre um sujeito e um objeto. “A emoção é uma maneira de apreender o mundo” . Nesse jogo com o mundo, há um sujeito emocionado e um objeto emocionante que estão indissoluvelmente unidos. De modo que um sujeito X, que está com medo de um bairro violento, não é consciente do medo, mas consciente do objeto em questão: o bairro. A consciência é consciência do bairro violento. A síntese que se forma entre o medroso e o bairro se chama emoção.
Por aí se vê que a emoção não é nem pode ser uma desordem fisiológica, e sim uma organização que a consciência faz para apreender o mundo, se localizando nele, criando com ele certo ponto de vista; como também certo ponto de partida que será útil para uma ação futura. Essa é a primeira refutação de Sartre. Se deixamos de olhar de fora para dentro, entendemos que a emoção não é efeito de eventos externos. Sentir-se emocionado não é efeito de um objeto emocionante. Não é o bairro violento que me causa medo, nem tampouco é a película cômica a causadora da alegria. Os objetos “bairro” e “película” não carregam em si essa potencialidade. Os objetos não podem ir além do que são. As origens do medo e da alegria estão no modo como a consciência liga o sujeito ao objeto; e, por isso, não estão no modo como o objeto é em-si, mas para mim, diante de mim. A causa da emoção só pode vir de dentro, ou seja, da potência sintética da consciência, que varia de sujeito e de objeto, ganhando relevo maior ou menor conforme decorre essa relação.
Conforme dito, cai por terra o paradigma do senso comum, que crê que as coisas são emocionantes em si mesmas. Há séculos que se convencionou acreditar que o mundo é rodeado de coisas horríveis e deprimentes. Deu-se tanto cartaz a tais “verdades” que o cinema e a literatura tomaram ótimo partido disso, e fundaram um repertório de imagens fabulosas. Seguindo o prisma determinista, a tradição em que vivemos abraçou a ideia de que o horrível e o deprimente estariam fora, no mundo, como exemplares de emoção. Ambos seriam propriedades naturais dos objetos, de forma que, desde sempre, estariam lá, dentro deles, prontos para causar, em qualquer pessoa, o medo e a tristeza.
Já que optamos pela visão sartreana, então é preciso considerar as relações entre sujeito e mundo. Se algo se dá como horrível, ele não “é” horrível, mas aparece horrível para um sujeito, cuja consciência emocional atribuiu ao objeto essa qualidade. O sujeito emocionado só pode ver o horrível não por causa do objeto, mas porque a existência cria uma linha de tensão, que Sartre chamou de situação. A situação é um plano de imanência no qual o sujeito está aprisionado em relação ao mundo, como se vivesse cerrado entre quatro paredes. Nesse contexto, o mundo faz exigências, povoando-se de potencialidades que devem ser realizadas . O mundo dispara imperativos a todos os instantes: coma, beba, durma, levante, apresse-se, vista-se, produza, divirta-se; essas exigências reclamam a atenção do sujeito e, nessas condições que o pressionam, ele sente no corpo os efeitos.
Esses efeitos são o que conhecemos como afetos. A situação afeta; provoca reações no corpo, exige dele responsabilidades que deve cumprir. Porém, no campo afetivo, o sujeito não está lá; existe apenas o corpo situado entre outros corpos. Não se pode contar ainda com o “eu”, com o sujeito livre, porque, enquanto o mundo nos afeta, mudanças ocorrem no interior e na superfície do corpo, sem que a consciência tenha tempo de consentir ou reprovar; simples e espontaneamente acontece. O campo afetivo é, portanto, uma área impessoal, na qual nos encontramos mergulhados no “mundo dos objetos” .
Sartre teve a preocupação de dividir a consciência emocional em duas modalidades. A primeira é a consciência irrefletida, que seria uma emoção-afeto. Nesse momento, os objetos do mundo “constituem a unidade de minhas consciências, que se apresentam com valores, qualidades atrativas e repulsivas, mas eu mesmo desapareci” . Quando o horrível se mostra, não sou nem eu quem vê o objeto assim, nem é ele quem me faz vê-lo assim. O horrível é modo como a consciência espontaneamente se deu naquele encontro sujeito-objeto. No plano irrefletido não vale a subjetividade de quem se emociona; só a situação.
A segunda modalidade é a consciência refletida. Nela, o que antes era espontâneo e obedecia ao rigor da situação, ganha outra significação. A consciência emocional refletida tem a função de organizar o corpo afetado, de tal forma a fazê-lo “transcender e perceber-se no mundo como uma qualidade de coisas. Assim, pode-se compreender todas as exigências e as tensões do mundo que nos cerca” . Não basta ser afetado pelo mundo, atribuindo-lhe irrefletidamente uma qualidade de horrível. A emoção é rebelde frente às cercanias da situação. A consciência emocional não é limitante a esse ponto; ela avança; e se dirige à transcendência, isto é, a esse modo livre e refletido de conduzir o afeto.
Sartre nos diz que a consciência emocional refletida faz uma espécie de operação mágica, uma vez que é “transformação do mundo” . Ele nos diz que “quando os caminhos traçados se tornam muito difíceis ou quando não vemos caminho algum, não podemos mais permanecer num mundo tão urgente e tão difícil. Todos os caminhos estão barrados. No entanto, é preciso agir” . A emoção-conduta muda o mundo do corpo padecido, e o orienta a viver “como se as relações das coisas com suas potencialidades não estivessem reguladas por processos deterministas, mas pela magia” . O que seria, então, essa magia?
Transcender não é transporte para o além, evadindo para uma dimensão espiritual; mas, antes, transcender é colocar-se, na turbulência do mundo, mas fora de si, quer dizer, tendo uma consciência posicional de si. Em outras palavras: é a consciência se sabendo afetada. Enquanto não transcende, a consciência padece da emoção-afeto e “não se pode sair dela à vontade” . Cada consciência emocional deve esperar que o afeto desapareça da mesma forma espontânea como apareceu. Se não fosse a consciência refletida, munida da potência transcendente, o afeto permaneceria perturbando o corpo até o esgotamento. É graças à transcendência que o sujeito surge e rompe com esse vínculo, conferindo ao objeto, “sem modificá-lo em sua estrutura real, uma outra qualidade, uma menor existência ou uma menor presença” . Logo, emoção é o corpo “dirigido pela consciência” mudando “relações com o mundo para que o mundo mude as suas qualidades” .
A emoção-conduta é o ato mágico que o “eu” transcendido faz para atribuir ao mundo significação pessoal. A alegria, a tristeza, o medo e a cólera são condutas que ele, ao refletir sobre o estado afetivo, usa como drible para que o mundo esteja a seu serviço, e não o contrário. É mágico quando a consciência consegue entristecer-se a tal ponto que decide refugiar-se para dentro de si, para não encarar o objeto. Da mesma forma é mágico quando, na alegria, o sujeito decide cantar e dançar porque algo lhe afetou. Em ambos os casos, não é do mundo a exigência de se alegrar ou se entristecer, mas é do sujeito o modo como vai gerenciar afetos e pôr sua liberdade em exercício. Gritar de medo a ponto de espantar outros, quebrar coisas ao redor, quando a cólera desponta, são condutas mágicas porque aparecem como escolhas que o sujeito fez para responder à sua maneira o mundo, interferindo em sua constituição, seja adicionando seja subtraindo objetos e qualidades. Por isso, a emoção guarda algo de mágico: ela é capaz de significar e ressignificar o mundo através da conduta, que é pecúlio exclusivo de uma consciência emocional livre.

By